quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A revolução para pior na Turquia e a consciência política da fala

Em artigo publicado no último dia 27, na National Review, o influente analista especializado em Oriente Médio Daniel Pipes faz um alerta de certa forma surpreendente. Segundo ele, a Turquia, "junto com o Irã", pode ser "o país mais perigoso da região".

O assunto não é novo. Desde a chegada ao poder, em 2003, do partido Justiça e Desenvolvimento, de conotação islâmica e liderado pelo primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, o debate sobre os rumos da Turquia – tradicional aliado do Ocidente e de Israel no Oriente Médio – ganhou mais atenção.

No entanto, para alguém que procure, não será fácil achar uma análise tão contundente do problema como a de Pipes. Para o autor, pode-se perceber hoje: um enfraquecimento da classe militar turca, bastião de defesa tradicional do secularismo com base na ideologia republicana do "pai fundador" Kemal Ataturk, e uma oposição política mais antiocidental que o próprio partido de Erdogan. Além disso, há o risco de colapso econômico e elevação das tensões com os curdos, acompanhados de um forte discurso anti-Israel e uma postura mais agressiva de Istambul em uma série de questões internacionais que envolvem o interesse turco.

O primeiro ponto – o enfraquecimento da classe militar – está ligado à renúncia em julho de quatro dos cinco chefes do Estado-Maior turco. Segundo a Reuters, a saída em massa está relacionada a tensões entre os militares e o governo Erdogan. Para Daniel Pipes, o desfalque pode ser considerado "o fim da República de Ataturk", o que "abre o caminho para que os ideólogos do Justiça e Desenvolvimento possam seguir em frente com a ambição de criar uma ordem islâmica" na Turquia.

Sobre o segundo ponto, Pipes chama a atenção para o fato de que os dois principais partidos de oposição são contrários ao comportamento moderado de Istambul, por exemplo, em relação à Síria e à questão dos radares da Otan em território turco.

O apontado "risco de colapso econômico" tem por base o trabalho de David Goldman. Pipes acusa o governo Erdogan de ter assumido maciços empréstimos de curto prazo no intuito de manter um ritmo elevado de consumo que pudesse garantir sua reeleição em junho deste ano. Goldman compara a situação turca atual com a do México em 1994 e a da Argentina em 2000.

O artigo chama a atenção também para o fato de que uma nova liderança curda, com novas estratégias de guerrilha, tem recentemente aumentado a tensão entre Istambul e os curdos, quase 20% da população na Turquia.

Além disso, segundo o especialista, Erdogan tem repetido um perigoso discurso contra Israel para fortalecer sua posição interna e externa, em especial após o incidente que causou a morte de oito cidadãos turcos na embarcação Mavi Marmara, interceptada por forças israelenses no Mar Mediterrâneo quando se dirigia à Faixa de Gaza em maio de 2010. O analista afirma que Erdogan não hesita em mencionar a possibilidade de uma guerra contra Israel "se necessária" e promete enviar uma nova embarcação à Gaza, desta vez sob escolta da Marinha turca.

Como se não bastasse, há problemas de fronteira com o Chipre que envolvem reservas recém-descobertas de petróleo no Mediterrâneo, além de questões pendentes com os vizinhos Síria e Iraque.

O medo é que a Turquia se transforme em um novo palco expressivo de nacionalismo islâmico na região. Afinal, uma mudança de postura do país certamente terá um impacto significativo no precário equilíbrio estratégico do Oriente Médio. No entanto, há algo fundamental que não aparece em nenhum momento na análise de Pipes: a população turca.

O fato de Erdogan ter sido eleito e reeleito não necessariamente significa que ele e/ou o partido podem ou poderão fazer o que bem quiserem com os rumos do país, cuja dinâmica histórica estabelece densos e sólidos alicerces comumente chamados de tradição. Povos inteiros, em regimes democráticos ou não, não são joguetes da racionalidade política, apenas acessórios cuja exclusão torna a retórica analítica mais inteligível, sedutora e eficiente. Afinal, vale dizer, o discurso que enfraquece a autonomia do cidadão é o mesmo que fortalece a tirania de governo.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

O custo político dos impostos no Brasil


Muito pior que os problemas que os altos impostos no Brasil trazem para a economia é o que eles deixam de fazer para o cidadão. Deu na Folha de sábado (24/09), a carga tributária aumentou novamente no Brasil em 2010. Como afirma o jornal, com dados da Receita Federal, os impostos recolhidos nas três esferas de governo (federal, estadual e municipal) alcançaram R$ 1,2 trilhão de reais no ano passado, chegando 33,56% do PIB, um aumento de 9% em relação a 2009. A Folha, no entanto, também cita um estudo dos economistas José Roberto Afonso e Márcia Monteiro, que mostra uma arrecadação ainda maior: 35,16% do PIB. Ao se comparar o índice brasileiro com os de outras nações do mundo, como já foi feito neste Blog, percebe-se que o Brasil está, no que diz respeito à cobrança de impostos, ao lado de países como Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Espanha. No entanto, como qualquer brasileiro sabe, com uma prestação terrível de serviços públicos.
De fato, a questão dos impostos é outra que em geral é tratada apenas pelo enquadramento econômico típico do debate político brasileiro. Na maior parte das vezes, a interpretação do tema se limita ao argumento do empresariado, que se ressente dos altos impostos que prejudicam sua capacidade de produzir e investir, e, do outro lado, à posição daqueles favoráveis a uma presença mais forte do Estado na economia e na sociedade, que rechaçam a crítica "liberal".
Nesse contexto, nenhum dos dois lados atesta o que é verdadeiramente trágico no Brasil, o fato de que os altos impostos não são capazes de gerar graus mínimos de igualdade de oportunidades no país, perpetuando, inclusive, desigualdades. Basta olhar o estado dos serviços públicos brasileiros, aqueles responsáveis per se pela geração de igualdade.
Nesse sentido é que o papel da autoridade brasileira se torna assim duplamente perverso, já que o Estado se apropria de uma ampla parcela da renda do mercado e da sociedade – que poderia se transformar em mais investimento, emprego e serviços – mas não a transforma em benefícios públicos universais de qualidade, geradores de igualdade social e de oportunidades. Muito pior que o custo econômico dos impostos é o que pode ser chamado de "custo político dos impostos". Afinal, uma nação pode politicamente optar por altos impostos, por um tipo de liberalismo mais preocupado em gerar oportunidades iguais à população e com os custos dessa posição para a dinâmica econômica.
De fato, a restrição do tema ao enquadramento puramente econômico reduz a questão ao debate entre liberais e intervencionistas/nacionalistas, ao consolidar posições e identidades ideologicamente pouco flexíveis. Assim, o cerne da questão não recebe o tratamento devido. Matérias, artigos e relatórios se sucedem sem que nada de significativo mude com o tempo. É preciso uma nova linguagem para este debate. A questão, afinal, passa pela própria qualidade existencial do Estado. Por que e para que existe o Estado? Quais devem ser suas prioridades?


sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Leitura de fim de semana: "Nacionalismo no novo mundo", de Marco Pamplona e Don Doyle (orgs.)

Obra organizada pelos professores Marco Antonio Pamplona, do Departamento de História da PUC-Rio, e Don Doyle, do Instituto Richard Walker, na Universidade da Carolina do Sul, reúne ensaios sobre o nacionalismo do século XIX nas três Américas, ou, como o próprio subtítulo afirma, sobre "A formação de Estados-nação no século XIX".

Publicado pela editora Record, o livro, em primeiro lugar, traz uma contribuição essencial à questão do nacionalismo ao tratar o conceito como a ideologia por trás da constituição da nação e da formação do Estado-nação, retirando-o assim da pendenga entre liberais e nacionalistas. Afinal, como afirmam os organizadores, "em sua juventude, o nacionalismo estava firmemente alinhado com o movimento humanitário liberal pela liberdade, igualdade e autonomia".

Da mesma forma, em relação à percepção negativa que em geral há sobre o termo, os organizadores ressaltam: "O nacionalismo diz às pessoas quem elas são e quem pertence à comunidade. Pode ser uma força geradora de exclusão, repressão e conflito violento, mas também pode ser um poderoso propulsor para a assimilação". De fato, é difícil conceber uma nação, ou mesmo um Estado-nação, sem um nacionalismo, que constitui ambos por meio do discurso e da ideologia. Afinal, uma nação não existe objetivamente, não existe antes do discurso constituidor.

Outra contribuição importante da obra é a ênfase que dá às especificidades do nacionalismo nas Américas, em um campo teórico dominado pela perspectiva européia. Nas Américas, o nacionalismo se desenvolve de maneira específica, abarcando sociedades étnica e culturalmente plurais, onde o caráter cívico, essencialmente político, se sobressai.

Sobre o Brasil, vale ressaltar o artigo de Hendrik Kraay: "Nação, Estado e política popular no Rio de Janeiro: rituais cívicos depois da independência". Nele, o autor mostra como o nacionalismo brasileiro se adapta ao contexto de um Estado imperial, receoso de uma expressão ideológica demasiadamente forte, como o nacionalismo revolucionário norte-americano, que pudesse romper com as estruturas sociais da época, em especial com o escravismo.

Onde comprar:

Na Estante Virtual.
Na Travessa.
Na Cultura.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

IPI, pior que o imposto é o decreto

A decisão do governo brasileiro de aumentar o Imposto sobre Produto Industrializado, o IPI, para veículos fora dos 65% de "conteúdo nacional" não é economicamente ruim, é políticamente terrível.

Muito pouco comentado na imprensa, com sua tradicional preferência pelo enquadramento econômico, a origem de todo o debate é o Decreto No. 7.567, de 15 de setembro de 2011, anunciado no dia pelos ministros da Fazenda, Guido Mantega, do Desenvolvimento, Fernando Pimentel, e da Ciência e Tecnologia, Aluízio Mercadante, e publicado no Diário Oficial da União do dia seguinte. O decreto é, na verdade, um recurso semelhante ao que o governo anterior já havia utilizado para a redução do IPI durante o pico da última crise global, com a diferença de que para baixo ninguém reclama.

O texto, um ato kafkaniano de um Estado quase-orwelliano, regulamenta uma medida provisória (No. 540) e altera outro decreto (No. 6.006): a "presidenta", pelos poderes que lhe dão o art. 84, inciso IV, da Constituição, e "tendo em vista" o disposto nos incisos I e II do "caput" do art. 4o do Decreto-Lei No. 1.199, de 27 de dezembro de 1971, e os arts. 5o e 6o da Medida Provisória No. 540, de 2 de agosto de 2011, DECRETA.

Nenhuma sociedade é verdadeiramente livre sob o jugo de tamanho poder de intervenção dependente apenas da assinatura de um decreto. A medida estabelece de uma hora para outra perdedores e vencedores, quando em ambos os casos há aqueles que fizeram planos e investimentos, pagaram seus impostos e são cidadãos em situação de igualdade.

Que o governo proponha a sugestão, apresente os motivos e o contexto da necessidade, debata com os setores mais diretamente afetados, com a sociedade e a imprensa; discuta com governadores, senadores e o Congresso e, se possível, coloque ainda o projeto em algum tipo de pleito, vá lá. Dá até para engolir. Por decreto, não.

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Será o fim de Israel?

Artigo do polêmico historiador Benny Morris, expoente dos chamados "novos historiadores" israelenses, publicado em uma edição recente da Newsweek, afirma: o nacionalismo sionista calcado na socialdemocracia e no igualitarismo, como princípio original da fundação do Estado de Israel e do povo israelense, ficou para trás. Para o autor, o país vive hoje "uma profunda crise interna e existencial", e pergunta: Is Israel Over?

O momento não é dos melhores. No campo externo, a Autoridade Palestina promete criar unilateralmente o Estado da Palestina no próximo dia 20 de setembro e buscar reconhecimento na ONU. Dado seu caráter unilateral, o ato pode trazer conseqüências imprevisíveis para a região.

Além disso, há os problemas no Egito. As revoltas recentes no velho aliado despertaram sentimentos antissionistas no país. O ex-ditador/presidente Hosni Mubarak ganhou a pecha de traidor aliado dos judeus, a embaixada israelense foi saqueada e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu teve sua foto estampada em um jornal popular egípcio vestido de oficial da SS nazista, com um bigode no estilo do eterno Belzebu. Além dos problemas no Egito e das incertezas oriundas das revoltas árabes, Israel vive hoje em meio ao desenvolvimento nuclear iraniano, às ameaças do Hamas, na Faixa de Gaza, e do Hisbolá, no Líbano.

Mas também no campo interno os problemas são muitos e o país enfrenta a maior onda de protestos de sua história. Segundo o historiador, a situação está relacionada a um certo desvio de caráter do nacionalismo israelense (não somente do governo israelense), hoje mais próximo da direita, menos focado no igualitarismo, menos liberal e mais restritivo. Com isso, jovens israelenses vão às ruas clamar contra um sistema injusto de impostos, baixos salários e preços altos, em especial no setor da habitação. Segundo Morris, 20% dos israelenses e 15% dos israelenses judeus vivem atualmente abaixo da linha de pobreza. Enquanto os 10% mais ricos do país detêm mais de 30% da renda, os 10% mais pobres ficam apenas com 1.6%. Há fuga de cérebros e de artistas, que se vêem impossibilitados de desenvolver seu trabalho e preferem até mesmo a traumática Berlim a Tel Aviv.

Ainda no mesmo contexto, os políticos são milionários, percebidos como corruptos e alguns julgados por corrupção, como o ex-primeiro-ministro Ehud Olmert. Bem diferente do exemplo deixado pelo primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion.

Na verdade, o "outro conveniente" freudiano vem funcionando há décadas dos dois lados em benefício de certas ideologias e correntes políticas, o que ocorre não somente nas políticas israelense e palestina, mas também em muitos países do Ocidente e de maioria islâmica, em suas respectivas escalas. Trata-se de um discurso que possibilita uma dinâmica ideológica e política específica, consolidando identidades em um processo relacionado a um "outro" particular ameaçador. O processo autoriza, legitima e reforça o poder de certos setores sobre o todo "nacional" e implica em determinadas políticas externas e internas para o país.

O resultado de décadas dessa dinâmica são os problemas internos da sociedade israelense e o perigoso contexto "barril de pólvora" ao redor do Estado de Israel, em uma região que serve de núcleo duro de referência para uma série de outros conflitos espalhados pelo planeta.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Educação no Brasil promove desigualdade, mostra avaliação inédita

Os resultados de uma avaliação inédita feita sobre o sistema educacional brasileiro, divulgados no fim de agosto, apontam mais uma vez para o descaso absurdo com a qualidade do ensino público no país e as desigualdades que se reproduzem desta situação. A Prova ABC, Avaliação Brasileira do Final do Ciclo de Alfabetização, uma iniciativa da organização Todos Pela Educação com o Instituto Paulo Montenegro/Ibope, a Fundação Cesgranrio e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Texeira (Inep), avaliou 6 mil alunos que concluíram o 3o ano (2a série) de todas as regiões do país. Foram aplicados exames de leitura, matemática e redação.

Seguindo a tendência de um relatório divulgado ano passado pela OCDE, já comentado anteriormente, os resultados mostram uma enorme discrepância entre as escolas públicas e privadas no país. Com relação ao exame de leitura, por exemplo, apenas 56% dos alunos avaliados tiveram o desempenho esperado para a sua série, número que se torna ainda mais alarmante quando se percebe que apenas 48,6% dos estudantes oriundos das escolas públicas tiveram o desempenho esperado, enquanto 79% daqueles matriculados nas instituições privadas alcançaram o mínimo.

Ainda no que diz respeito à leitura, os resultados são piores quando se avalia os resultados por região: apenas 39,4% dos alunos de escolas públicas na região Norte e 36,5% no Nordeste alcançaram o mínimo estabelecido pela escala Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica). No Sudeste, Sul e Centro-Oeste, as porcentagens foram de 54,4%, 56,5% e 56,8%, respectivamente. Para os alunos das escolas privadas nessas três regiões, o mínimo foi alcançado por 85,1%, 86,8% e 85,5%, respectivamente. Ou seja, pode-se imaginar com facilidade a diferença que se estabelece entre um aluno de escola pública no Nordeste e outro de escola privada no Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba e Porto Alegre.

Na matemática, os resultados foram ainda piores. A porcentagem média nacional de estudantes que concluíram o 3o ano e atingiram o mínimo estabelecido foi de apenas 42,8%; 32,6% nas escolas públicas e 74,3%, nas privadas; chegando a 21,9% nas instituições públicas no Norte e 25,2% nas escolas públicas no Nordeste.

Para o exame de redação, apenas 53,4% dos estudantes atingiram o mínimo estabelecido; média de 43,9% quando oriundo das escolas públicas (chegando a alarmantes 21,3% no Nordeste) e 82,4%, das privadas.

Como já insistido diversas vezes, o quadro se torna mais absurdo e esquizofrênico quando é comparado com a carga tributária no Brasil, em torno de 37%/38% do PIB e entre as maiores do planeta, que, apesar das prerrogativas do federalismo brasileiro, não condiz com os vergonhosos salários dos professores da rede pública fundamental e o baixíssimo investimento público médio em educação no país, em torno de US$ 1000 por pessoa em idade educacional, como mostra o especialista e professor Nelson Cardoso do Amaral, da Universidade Federal de Goiás. Países como a Coréia do Sul e a Espanha investem cinco ou seis vezes mais.

No fim, fica a pergunta: no lugar de novos impostos, por que não pensar em novas prioridades?