quinta-feira, 13 de março de 2014

Democracia e representação

Publicação brasileira dialoga com novas perspectivas sobre a prática representativa em regimes democráticos.

O professor de Ciência Política da Universidade de Brasília (UNB) Luis Felipe Miguel acaba de lançar, pela editora Unesp, o livro Democracia e representação: Territórios em disputa. A obra vem se juntar a uma série de novos trabalhos sobre o tema que, para alguns autores, acaba por constituir, junto com os movimentos populares mais recentes, uma retomada da discussão sobre a representação política nos regimes democráticos.

Afinal, uma ampla literatura ressalta hoje uma gama de fenômenos históricos e sociais recentes que teriam modificado as condições nas quais a representação política se desenvolveria nas democracias contemporâneas. Alguns autores, por exemplo, apontam para uma crise no "pensamento standard" da representação, que se limitaria a conceber a prática às formas eleitorais e a partir de uma base territorial específica - o Estado-nação. É ressaltado, por exemplo, nesse contexto, o surgimento de arenas decisórias transnacionais, onde proliferam atores e temas de natureza não-territorial que escapariam do alcance da "representação standard", com base no voto e circunscrita ao Estado. 

Além disso, a literatura chama a atenção para o fato de que temas e arenas decisórias coletivas, nos níveis nacional e supranacional, estão hoje sob controle de especialistas, que percorrem caminhos distantes das tradicionais instituições da representação em regimes democráticos. Soma-se a tudo isso a relativização do caráter igualitário da democracia representativa moderna por demandas de reconhecimento, equalização ou compensação de grupos estabelecidos em torno de características, identidades ou condições sociais e/ou culturais. Tais demandas estariam produzindo um discurso de representação com base em lógicas diferentes daquelas ligadas ao igualitarismo e universalismo do “modelo standard” eleitoral e territorial.

São apontadas, assim, novas estruturas e oportunidades para a representação e a influência política, que não apenas refletiriam em parte um papel diminuído das estruturas formais nos processos decisórios, mas se constituiriam de uma crescente diversificação das formas público-discursivas e de associação nas sociedades contemporâneas.

Em meio a toda essa discussão, não à toa surgem também questões sobre a legitimidade e o caráter democrático das representações de tipo não-eleitoral e não-territorial, ou mesmo das chamadas “invocações ou reivindicações de representação”, que estão presentes na teoria mais recente sobre o tema. Nesse contexto, a literatura alerta para a diluição das certezas sobre “quem 'fala', por quem e com que autoridade”. Uma pesquisa feita em São Paulo e na Cidade do México afirma, por exemplo, que o ceticismo frente ao crescente protagonismo das organizações civis como agentes de intermediação política se mostra pertinente.

Inserido nesse debate, o livro de Luis Felipe Miguel ressalta a necessidade de se reforçar os mecanismos de controle e acompanhamento por parte do cidadão da prática representativa e desconfia das novas formas de pensar a representação política nas democracias contemporâneas, apresentadas pela literatura mais recente. Segundo o autor, como está na quarta capa de sua obra, "representação e democracia são 'territórios em disputa' porque tanto podem se concretizar em arranjos que favorecem a perpetuação das assimetrias e das relações de dominação quanto podem ampliar o custo de sua reprodução e, assim, contribuir para combatê-las". Nesse contexto, continua, a "teoria política não é um lugar neutro; ao contrário, é partícipe desta disputa, sem que isso signifique engajamento cego, redução da complexidade do real ou abandono do rigor na produção do argumento".

Ao fim, a meu ver, mais importante que as questões intrínsecas ao debate é perceber o quanto a discussão sobre a representação democrática, ora pensada a partir de uma “crise de representação” ou “crise da democracia representativa”, ora concebida através da necessidade de se reconfigurar os processos representativos a novas condições, tornou-se mais denso nos últimos anos, com a presença de uma multiplicidade de perspectivas e teorias normativas, pós-modernas, dos campos da comunicação política, da sociedade civil, das relações internacionais e da própria teoria democrática. Uma literatura que carrega o potencial de gerar reflexões sobre os processos que constituem a representação nas democracias contemporâneas, reafirmando dessa forma a própria posição da representação na teoria da democracia.

Para saber mais:
- CASTIGLIONE, D.; WARREN, M.E. Rethinking Democratic Representation: Eight Theoretical Issues. Texto apresentado no seminário Rethinking Democratic Representation, Centre for the Studies of Democratic Institutions, University of British Columbia, 18-19 de maio de 2006.
- LAVALLE, A.G.; HOUTZAGER, P.; CASTELLO, G. Democracia, pluralização da representação e sociedade civil. Lua Nova, n. 67, 2006, p. 49-103.
- MANSBRIDGE, J. Representation Revisited. Democracy & Society, vol. 2, n. 1, 2004, p. 1, 14-19.
- MANSBRIDGE, J. Rethinking Representation. American Political Science Review, vol. 97, n. 4, Novembro, 2003, p. 515-528.
- NÄSTRÖM, S. Where is the representative turn going? European Journal of Political Theory, vol. 10, n. 4, 2011, p. 501-510.
- REHFELD, A. Representation Rethought: On Trustees, Delegates, and Gyroscopes in the Study of Political Representation and Democracy. American Political Science Review, vol. 103, n. 2, Maio, 2009, p. 214-230.
- SAWARD, M. The Representative Claim. Nova York: Oxford University Press, 2010.
- SHAPIRO, I.; STOKES, S.C.; WOOD, E.J.; KIRSHNER, A.S. (eds.). Political Representation. Nova York: Cambridge University Press, 2009.
- VIEIRA, M.B.; RUNCIMAN, D. Representation. Londres: Polity Press, 2008.
- URBINATI, N. O que torna a representação democrática? Lua Nova, n. 67, 2006, pp. 191-228.
- URBINATI, N. Representative Democracy: Principles and Genealogy. Chicago e Londres: University of Chicago Press, 2008.

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